sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Saramago e Eco, Automecânica

No Blog do Gomes, hoje:

SÃO PAULO (um deus das letras) - Mecânico na juventude, e lá se vão mais de 60 anos, José Saramago foi capaz de transformar uma troca de junta de motor na arte mais pura do escrever. O Nobel de Literatura culpa esse pequeno incidente relatado com enorme maestria, graça e doçura pelo trauma que o fez nunca dirigir um automóvel. Quem mandou o texto foi o blogueiro Ricardo Botto.

Eu morro de inveja de quem escreve desse jeito. Como ninguém mais escreve desse jeito, morro de inveja de José Saramago. Inveja boa, que se vai à primeira leitura e se transforma em admiração e reverência.

Afinal, quem mais escreveria algo assim? “Pelo tubo de escape do carro saía um avultado jorro de água que, pouco a pouco, diante dos meus olhos estupefactos, foi diminuindo de caudal até ficar reduzido a umas derradeiras e melancólicas gotas.”

Meu comentário, despropositado, como sempre:

Amo de paixão o Saramago, assim como o Umberto Eco (ambos escrevem frases com 18 períodos e 36 orações, 40 vírgulas e um ponto final. Vejam esta passagem do Eco, n “O pêndulo de Foucault” (lembrando que é de 1988):

“Ontem à noite me caiu às mãos o manual de automóvel. Não sei se foi a penumbra, ou se qualquer coisa que me tinha dito, mas invadiu-me a suspeita de que aquelas páginas diziam Alguma Coisa Mais. E se o automóvel existisse apenas como metáfora da criação? Mas não se deve ficar limitado ao aspecto exterior, ou à ilusão do painel, é necessário ver aquilo que só o Artífice vê, o que está por baixo. O que está por baixo é como o que está por cima. É a árvore das sefirot”.

“Não me diga.”

“Não sou eu quem digo. Ela se diz. Antes de tudo, a árvore motora é uma árvore, como a própria palavra diz. Pois bem, se contarmos o motor dianteiro, as duas rodas da frente, a freagem, o câmbio, os dois eixos, o diferencial e as duas rodas traseiras, teremos dez articulações, como as sefirot.”

“Mas as posições não coincidem.”

“Quem foi que disse? Diotallevi nos explicou que em certas versões Tiferet não era a sexta mas a oitava sefirah, e estava sob Nezah e Hod. A minha é a árvore de Belboth, de outra tradição.”

“Fiat.”

“Mas continuemos com a dialética da Árvore. No alto o Motor, Omnia Movens, do qual diremos que é a Fonte Criadora. O Motor comunica sua energia criativa às duas Rodas Sublimes — a Roda da Inteligência e a Roda da Sabedoria.”

“Isto se o carro for de tração dianteira…”

“A beleza da árvore de Belboth é que admite metafísicas alternativas. Imaginese um cosmo espiritual com tração dianteira, onde o Motor à frente comunica imediatamente seus desígnios às Rodas Sublimes, enquanto na versão materialística temos a imagem de um cosmo degradado, em que o Movimento vem impresso por um Motor Último às duas Rodas Ínfimas: do fundo da emanação cósmica se libertam as forças baixas da matéria.”

“E com motor e tração traseiros?”

“Satânico. Coincidência do Súpero e do Ínfero. Deus se identifica com os movimentos da matéria grosseira posterior. Deus como aspiração eternamente frustrada à divindade. Deve depender da Ruptura dos Vasos.”

“Não será a Ruptura do Silencioso?”

“Isto nos Cosmos Abortivos, onde o hálito venenoso dos Arcontes se expande no Eter Cósmico. Mas não nos percamos no caminho. Depois do Motor e das duas Rodas, vem a Freagem, a sefirah da Graça que estabelece ou interrompe a corrente de Amor que liga o restante da Árvore à Energia Superna. Um Disco, uma mandala que acaricia outra mandala. Dali o Escrínio de Mutações, ou a caixa de mudanças, como dizem os positivistas, que é o princípio do mal porque permite àvontade humana aumentar ou diminuir o processo contínuo das emanações. Por isso o câmbio automático custa mais, porquanto aqui é a própria Árvore que decide segundo o Equilíbrio Soberano. Depois vem um Eixo, que por acaso tem o nome de um mago do Renascimento, Cardam (Cardam é a forma francesa de Cardano ((Gerolamo)), matemático italiano ((1501- 1576)) inventor inclusive da engenhosa transmissão, também chamada junta universal), e a seguir uma Dupla Cônica — note-se a oposição com os quatro Cilindros do motor — na qual há uma Coroa (Keter Menor) que transmite o movimento às rodas terrestres. E aqui se torna evidente a função da sefirah da Diferença, ou diferencial, que com majestoso senso de Beleza distribui as forças cósmicas às duas Rodas da Glória e da Vitória, as quais num cosmo não-abortivo (de tração dianteira) seguem o movimento dado pelas Rodas Sublimes.”

“A leitura é coerente. E o cerne do Motor, sede do Uno, Coroa?”

“Mas basta ler com olhos de iniciado. O Sumo Motor vive de um movimento de respiração e Descarga. Uma complexa respiração divina, em que originariamente as unidades, ditas Cilindros (evidente arquétipo geométrico), eram duas, gerando depois uma terceira, e por fim se contemplam e se movem por mútuo amor na glória da quarta. Nesta respiração no Primeiro Cilindro (nenhum deles é primeiro por hierarquia, mas por admirável alternância de posição e correspondência), o Pistão — etimologia de Pistis Sophia — desce do Ponto Morto Superior ao Ponto Morto Inferior enquanto o Cilindro volta a encher-se de energia em estado puro. Simplifico, pois aqui entrariam em jogo hierarquias angélicas, ou Mediadores da Distribuição, que como diz o manual “permitem a abertura e o fechamento das Velas que põem em comunicação o interior dos Cilindros com os condutos de aspiração da mistura”… A sede interna do Motor só pode se comunicar com o resto do cosmo através dessa mediação, e aqui creio que se revela talvez, não quero dizer a heresia, mas o limite originário do Uno, que de qualquer forma depende, par criar, dos Grandes Excêntricos. Será preciso dar uma leitura mais atenta ao Texto. Em todo caso quando o Cilindro se enche de Energia, o Pistão sobe ao Ponto Morto Superior e realiza a Compressão Máxima. É a tsimtsum. E neste ponto que se dá a glória do Big Bang, a Combustão e a Expansão. Uma Centelha dispara, a mistura arde e inflama, esta é, diz o manual, a única Fase Ativa do Ciclo. E aí, aí se na mistura se insinuam as conchas, as gotas de matéria impura como água ou Coca-Cola, a Expansão não ocorre, ou ocorre em disparos abortivos.”

“Shell não quer dizer talvez qelippot? Aí então dá para desconfiar. Daqui por diante só Leite de Virgem…”

“Vamos verificar. Pode ser uma maquinação das Sete Irmãs, princípios inferiores que querem controlar o processo da criação… Em todo caso, depois da Expansão, vem a grande expiração divina, que nos textos mais antigos é chamada de Descarga. O Pistão sobe novamente ao Ponto Morto Superior e expele a matéria informe já agora comburida. Mal se obtém essa operaçã de purificação recomeça o Novo Ciclo. Que se pensarmos bem é igualmente o mecanismo neoplatônico do Êxodo e do Párodo, admirável dialética do Para Cima e Para Baixo.”

“Quantum mortalia pectora caecae noctis habent! Os filhos da matéria nunca se deram conta disto!”

“Por isto os mestres da Gnose dizem que não se deve confiar nos Hílicos, mas nos Pneumáticos.”

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